Ontem cruzamos, com a habitual solenidade dos distraídos, o solstício invisível do calendário. Sim, meus caros, a segunda temporada do ano começou, e ninguém sentiu cheiro de pólvora no ar. Não houve trovões, nem sinos, nem arcanjos com espadas flamejantes. Apenas mais uma folha virada no calendário e a eterna tragédia do homem moderno que se apavora com folhas viradas.
Há quem celebre. Há quem entre em pânico. Há quem tente recuperar o tempo perdido como quem tenta recuperar a castidade com um recibo de confessionário. E eu? Confesso que não senti nada. Nem vento gelado, nem sombra súbita, nem a menor vontade de mudar de vida — um escândalo.
Só me dei conta do tempo ao cair num artigo que perguntava: “Abril é o mês mais cruel?” O autor, que parecia ter lido muita poesia, comparava Chaucer e T. S. Eliot. Chaucer, como um bom inglês gorducho e otimista, via em abril a promessa das flores, a elevação dos corações e talvez, com sorte, um bom copo de cerveja. Eliot, como um bom moderno magro e melancólico, via em abril a maldição do renascimento, o fardo de fazer brotar da terra aquilo que já estava confortavelmente enterrado. (Peço desculpas pelo uso de estereótipos. São só caricaturas literárias).
Talvez, se me permitem, julho seja os dois. Não porque esteja frio, nem porque estejamos de casacos ou sem esperança, mas porque julho carrega o escândalo dos números: seis meses se foram. Metade. Meia vida, para alguns. Meia chance. Meia promessa.
Mas não quero falar de abril, nem desses dois ingleses respeitáveis. Quero falar do tempo. Esse velho cavalheiro que nos ignora solenemente enquanto tentamos domesticá-lo com relógios, aplicativos e metas trimestrais.
Basta o calendário mudar de junho para julho que os homens «esses seres racionais!» se dividem entre os que celebram e os que enterram. Mas quase nunca entre os que vivem. Porque, diante de qualquer mudança numérica, começamos a contar tudo: quantos livros lemos, quantos sonhos esquecemos, quantas conquistas podemos pendurar na parede como diplomas de um curso que ninguém lembra de ter feito.
E se não houver medalhas no pescoço, nos sentimos culpados. Como cobradores de uma dívida que inventamos. E aí, como bons acrobatas existenciais, decidimos que os próximos seis meses carregarão heroicamente todos os sonhos fracassados dos seis anteriores. Como se fosse possível enfiar doze litros de vida numa garrafa de seis.
Santo Agostinho já avisou: a alma está inquieta até repousar em Deus. Mas nós preferimos repousar em planilhas, em listas, em likes. Dizemos que queremos paz, mas compramos smartphones. Dizemos que queremos viver, mas contratamos metas.
E isso, sejamos francos, é uma crueldade. Com os outros, sim. Mas principalmente conosco. Porque o tempo «esse cavalheiro altivo» não é régua de ninguém. As 24 horas de um homem doente não são iguais às 24 horas de um homem apaixonado. Quem diz o contrário serve ao marketing, não à verdade.
Ainda assim, tentamos enfiar nossa história na fôrma dos outros. Dos vizinhos, dos pais, dos coaches digitais. E mesmo quando juramos que não vamos mais imitar os fracassos alheios, lá estamos, com o pé na mesma poça.
Corremos. Produzimos. Evoluímos. Mas será que vivemos? Será que "conquistar” é sinônimo de estar vivo? Será que ir rápido é sinal de sabedoria? Talvez «e aqui falo baixinho para não assustar ninguém» talvez seja justamente o contrário.
Talvez viver seja, como disse um velho santo (ou um velho sapateiro), elevar o coração, não o passo. Olhar a estrada, mesmo que coberta de folhas secas. Talvez viver seja aceitar que o tempo não é uma planilha.
E a pergunta que me atormenta não é “quantas vitórias você teve”, mas “quantas vidas você tocou”. Porque no fim estamos nos tornando tabelas ambulantes. Planilhas com pernas. Fazemos balanços da existência como quem fecha o caixa de uma padaria. E esquecemos de viver.
Contabilizamos nossas alegrias como quem empilha troféus. Mas ignoramos as tristezas — aquelas que nos empurraram para onde realmente precisávamos estar. Porque, sejamos honestos, nem toda conquista é uma vitória. E nem toda derrota é um desastre.
A única pergunta sincera que me resta é: quando vamos parar de correr atrás do tempo e, finalmente, viver o tempo que temos? Sem heroísmo. Sem planilha. Apenas com um café quente, uma conversa fiada, e um pouco de fé.
Minhas sinceras desculpas aos contadores de metas, de leituras, de hábitos e de passos. E também aos entusiastas monges da produtividade. Reconheço seus esforços. Mas, infelizmente, eu ainda prefiro me sentar aos ombros dos gigantes. Não dos que escalam montanhas de planilhas, mas dos que contemplavam o céu enquanto lavavam a louça.
Aqueles que, como Chesterton, sabiam que a vida não é um problema a ser resolvido, mas um mistério a ser saboreado. Que diziam coisas como:
“O mundo nunca sofrerá com a falta de maravilhas, mas apenas com a falta da capacidade de se maravilhar.”
E talvez seja esse o grande desafio da virada no calendário: não fazer mais, mas viver mais.
Artigo mencionado: Is April the Cruelest Month?
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Citação G. K. Chesterton: Tremendas Trivialidades.
Eu sei que estou deprimida quando desaprendo a me encantar com as coisas. Olhar as pedras e ver só pedras.
UAU! 🎯👏🏻